Amor entre dois opostos

Cláudia e Ricardo se conheceram em uma festa e foi amor à primeira vista. Logo decidiram que queriam se casar. Porém, o problema é que eles vinham de mundos muito diferentes. Cláudia vinha de família rica, era uma mulher refinada, que gostava de restaurantes caros, óperas, literatura e arte. Já Ricardo era uma pessoa de origem mais “grosseira”. Gostava de ficar jogado no sofá, bebendo cerveja e assistindo futebol. Sua leitura preferida eram os gibis. Adorava um “prato feito” de arroz, feijão e ovo no bar da esquina. 

Eles acharam que o amor venceria as dificuldades, mas com o tempo a convivência começou a se tornar difícil. Sentindo o clima pesado, Ricardo quis fazer algo para deixar sua esposa feliz e convidou-a para jantar fora. Claudia se animou, vestiu sua melhor roupa, colocou suas joias e caprichou na maquiagem. Quase desmaiou quando chegaram ao “Bar do Lobão”. Ela tentou agradar o marido e comer algo, mas ao morder o sanduiche, percebeu que seria impossível engolir. Correu ao banheiro para cuspir a comida e quase desmaiou ao ver tantas baratas no chão imundo. Cláudia também tentou fazer sua parte para melhorar a situação e levou Ricardo para conhecer uma ópera. Mas ainda no primeiro ato, Cláudia começou a escutar um barulho estranho. Olhou para o lado e viu que Ricardo dormia profundamente e roncava alto, incomodando as pessoas ao redor.

O casamento ia de mal a pior e a ideia de um divórcio parecia inevitável. Foi então que um amigo de Cláudia indicou um terapeuta de casais, famoso por fazer verdadeiros milagres. Cláudia foi para a primeira consulta. O terapeuta escutou atentamente todos os problemas relatados por ela e disse:

– Não vamos nem pensar em divórcio. Vocês se gostam, nasceram para ficar juntos. Precisamos fazer este casamento dar certo. Uma solução seria você descer para o mundo dele, tentando se acostumar com a comida de boteco e com os programas mais simples. Mas esta solução não seria boa, pois você abriria mão de sua identidade. Você já aprendeu a apreciar as coisas boas e finas, não há como apagar. Além disso, imagine o que aconteceria quando você voltasse para sua casa, para visitar seu pai na mansão em que ele mora. Você não saberia mais se comportar de uma maneira fina e seria uma grande vergonha.

– Portanto – continuou o terapeuta – a solução perfeita é fazer justamente o contrário. Você deve ensinar seu marido a ser uma pessoa fina. Ele deve aprender a apreciar uma boa comida, a gostar de uma boa música, a encontrar dentro dele a sua parte mais nobre. Ele não vai perder nada, só ganhar. Assim, vocês podem construir o casamento com harmonia, um ajudando o outro a cada vez refinar mais os sentidos.”

Este é o paralelo entre as duas partes que compõem o ser humano: o corpo material e a alma espiritual. Cada um deles está voltado à sua essência, criando um grande conflito de interesses. Como não podemos negar nenhum dos dois, como fazer para este “casamento” dar certo? Ensinando o corpo, mesmo quando ele busca prazeres do mundo material, a fazer isto de maneira mais elevada, canalizando para o espiritual.
 


Nesta semana lemos a Parashá Reê, na qual Moshé nos relembra dos dois caminhos que temos na vida: o caminho da Brachá (benção) e o caminho da Klalá (maldição). O caminho da Brachá, quando escutamos os ensinamentos de D’us, Quem nos criou e nos conhece nos mínimos detalhes; e o caminho da Klalá, quando achamos que somos sábios o suficiente para decidir sozinhos o nosso caminho.

No livro de Devarim, pelo fato de Moshé estar preparando o povo para a entrada na terra de Israel, diversas vezes ele adverte os judeus a não se comportem como os povos idólatras que viviam lá. Um dos ensinamentos da Parashá é a proibição de um costume relacionado ao luto, como está escrito: “Vocês são filhos de D’us, não façam cortes em vocês, nem rasgue o cabelo entre seus olhos por causa de um morto” (Devarim 14:1). Esta era a prática dos povos idólatras, que causavam ferimentos e cortes em seu próprio corpo em momentos de desespero, como após a perda de um ente querido, e a Torá nos adverte a não seguir este abominável costume.

Porém, quando observamos os costumes judaicos de luto, percebemos uma aparente contradição. Há uma Mitzvá trazida pelo Shulchan Aruch (Código de leis judaico) que diz: “Alguém cujo parente faleceu deve rasgar suas roupas por ele” (Yorê Deá, 340:1). Esta Mitzvá se aplica aos parentes mais próximos, que estão obrigados a se enlutar pelo falecido. E assim a Torá descreve que Yaacov se comportou ao escutar sobre a morte de seu filho Yossef, rasgando suas roupas em sinal de luto. Portanto, como pode ser que causar um ferimento no corpo é uma grande transgressão, enquanto rasgar a roupa, que também parece um ato de desespero, é uma Mitzvá? Qual o significado de rasgar as roupas em sinal de luto?

Explica o Rav Yonathan Guefen que para responder estas perguntas, antes precisamos entender o verdadeiro significado das roupas. Quando D’us criou Adam e Chavá (Adão e Eva) no Gan Éden, Ele os criou sem roupas, e mesmo assim a Torá nos conta que eles não sentiam vergonha. Porém, após terem transgredido ao comer o fruto que D’us havia proibido, a Torá conta que eles perceberam que estavam nus e, como não tinham roupas para cobrir a sua vergonha, imediatamente se cobriram com folhas. Mas o que mudou? Se eles já estavam nus antes, por que somente depois do pecado sentiram vergonha?

Para que possamos cumprir nossa missão neste mundo, D’us colocou no ser humano duas partes opostas: um corpo físico, que se conecta com o material, com os desejos e prazeres imediatos; e uma alma espiritual, que quer se elevar e atingir seu potencial. Desde o início da criação, o ser humano entendeu que não era apropriado que a sua essência ficasse completamente revelada e exposta. Por isso havia a necessidade de algum tipo de “cobertura” ou vestimenta. Como antes do pecado Adam se identificava como sendo uma alma espiritual, seu corpo tinha a única função de ser uma “vestimenta” para a alma, por isso não havia nenhuma necessidade de roupas para o corpo, que era algo secundário. Mas depois que Adam pecou, ele caiu do seu elevado nível espiritual e passou a se identificar mais com seu corpo. A partir do momento em que seu corpo tornou-se o principal, ele sentiu vergonha por não estar coberto e precisou de roupas também para o seu corpo. É interessante perceber que a palavra em hebraico para roupa é “Begued”, e vem da mesma raiz de “Beguidá”, que significa “traição”. A roupa é como se fosse um atestado de que o ser humano traiu a sua essência verdadeira, que é o seu lado espiritual. 

No erro de Adam Harishon, não apenas ele caiu espiritualmente, mas toda a humanidade caiu junto com ele. Todos os seus descendentes já nasceram em um nível espiritual inferior, no qual o foco principal era o corpo. Por isso, quando o corpo de um morto é enterrado e sua presença física não é mais percebida pelos nossos 5 sentidos, é comum que as pessoas pensem que toda a sua essência terminou para sempre. Por isso, em desespero, mutilam seu próprio corpo. A palavra “Kever”, que em hebraico significa “túmulo”, contém as mesmas letras da palavra “Rekev”, que significa apodrecer. Para muitos, a morte é o fim de tudo. Quando a pessoa faz cortes no seu corpo, demonstra sua crença de que o falecido deixou de existir completamente. Isto é uma grave proibição da Torá, pois é uma afirmação de que a pessoa não entendeu o propósito da vida neste mundo material.

De acordo com o judaísmo, isto é um grande erro. As letras da palavra “Kever” também formam a palavra “Boker”, que significa “amanhecer”. A morte é apenas a perda do corpo físico, mas a alma continua existindo. Por isso somos comandados a rasgar nossa roupa após a perda de um parente, para lembrar neste momento de dor e sofrimento que a essência da pessoa que amamos não deixou de existir. Somente seu corpo, que era uma vestimenta para sua alma, se perdeu, mas sua alma continua intacta.

As leis de luto no judaísmo não nos ensinam apenas como devemos nos comportar em relação à morte, mas também nos ensina como ter a perspectiva correta durante a vida. Em relação à morte, nós aprendemos que o falecimento não é o fim da existência da pessoa. Nós temos a certeza de que o falecido continua vivo, apenas foi para um plano de existência superior. E em relação à vida, devemos lembrar que a alma é a nossa verdadeira identidade, enquanto o corpo é um utensílio temporário, cujo único propósito é proporcionar bem estar à alma e ajuda-la a cumprir seu trabalho neste mundo. 

Mas isto não quer dizer que devemos ir para o extremo de abandonar e negligenciar as necessidades do nosso corpo. Temos uma obrigação da Torá de cuidar da nossa saúde e do nosso bem estar físico. A diferença do enfoque judaico é que, apesar de precisarmos fornecer ao corpo suas necessidades físicas básicas, isto não deve ser feito como um fim e sim como um meio. A pessoa deve cuidar de seu corpo para que possa ter força e saúde para utilizar em seus esforços de crescimento espiritual.

Parece fácil na teoria, mas sabemos que na prática não é tão simples assim. Com a queda das gerações, a tendência é cada vez mais nos conectarmos com o nosso corpo e seguirmos atrás dos nossos desejos materiais. Quando uma pessoa se sente mal, ela não diz “Meu corpo não se sente bem”, e sim “Eu não me sinto bem”, demonstrando que naturalmente focamos no nosso corpo como sendo a nossa essência. A necessidade de não se expor, de não permanecer descoberto, algo que era intuitivo desde Adam Harishon, não é mais importante atualmente. Isto pode ser facilmente observado na banalização da pornografia e na valorização das pessoas pelo seu corpo e não pelas suas características interiores. O recato nas roupas e no comportamento, mais conhecido como “Tsniut”, tornou-se um habito do passado. Aqueles que desejam ser recatados são vistos como pessoas antiquadas, pois o moderno é mostrar o corpo sem vergonha. Quanto mais ousado, mais moderno.

A consequência é que vemos cada vez mais o cumprimento das palavras do começo da Parashá, sobre os dois caminhos, a Brachá e a Klalá. O nome da Parashá, Reê, significa “Veja”, pois os caminhos da Brachá e da Klalá ficam cada vez mais evidentes e fáceis de serem enxergados. A falta de recato, o foco no corpo e o abandono dos conceitos espirituais da Torá levam à perda de outros valores, que são os pilares de uma vida harmônica, como a fidelidade e a família. Os casamentos estão cada vez mais descartáveis e os relacionamentos cada vez mais superficiais. As pessoas buscam apenas o prazer momentâneo e enjoam muito rápido, desejando passar para o próximo prazer. Os valores vão se moldando de acordo com os desejos e necessidades momentâneos, enquanto a falta de Brachá fica cada vez mais evidente no mundo.

A solução é reforçar o reconhecimento racional da importância primária da nossa alma e não esquecer que, da mesma maneira que as roupas que usamos são temporárias e perecíveis, assim também é o nosso corpo. A única maneira do casamento entre o corpo e a alma realmente funcionar, nos possibilitando ver Brachá em nossas vidas, é ensinar nossa alma a puxar para cima nosso corpo, de maneira que ele se eleve e busque, dentro do mundo material, os verdadeiros prazeres espirituais.

SHABAT SHALOM

R’ Efraim Birbojm

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