Bondade à prova de neve

Jerusalém é uma cidade que literalmente para quando ocorre uma nevasca. Como em Israel não neva todos os anos, e mesmo quando neva são apenas alguns poucos dias, então não existe uma estrutura preparada para fazer com que o país funcione após uma nevasca. Por exemplo, não existem equipamentos para limpar e retirar a neve acumulada nas ruas, o que impede as pessoas de circularem de carro. Portanto, quando ocorre uma nevasca em Jerusalém, por dois ou três dias tudo fica paralisado, e as pessoas acabam ficando presas em casa, sem conseguir sair.
 
Normalmente isto não é um problema. Ao contrário, as crianças fazem guerras de neve na rua e os adultos também acabam se divertindo. Mas às vezes as nevascas podem se transformar em grandes dores de cabeça. Foi o que aconteceu com as famílias Cohen e Diamant (nomes fictícios). O casamento destas famílias estava marcado justamente para a noite em que ocorreu uma grande nevasca em Jerusalém. A pergunta na cabeça de todos era: como os noivos e os convidados conseguiriam chegar até o salão de festas?
 
Quanto à dificuldade dos noivos chegarem, o problema foi facilmente resolvido. O noivo vivia próximo o suficiente do salão de festas para conseguir chegar lá caminhando. A noiva, que morava um pouco mais longe, foi transportada por uma ambulância da “Hatzalá” (equipe de resgate). Mas o grande problema eram os convidados, justamente os responsáveis por alegrar o casamento. Infelizmente a grande maioria não conseguiria ir, pois não havia qualquer meio de transporte disponível.
 
A notícia de que haveria uma festa de casamento com grandes chances de ser um fracasso começou a correr entre os judeus religiosos, e chegou às Yeshivót e Seminários para moças. Ao escutar a difícil situação do noivo e da noiva, muitos rapazes das Yeshivót e moças dos Seminários que ficavam no mesmo bairro do salão de festas vieram para participar do casamento e trazer alegria. O lugar logo ficou completamente lotado de pessoas animadas, que apesar de nem conhecerem o noivo e a noiva, faziam de tudo para alegrá-los. A vontade de ajudar era tanta que vieram muito mais pessoas do que havia sido programado. Era tanta gente, em um gesto de amor ao próximo tão impressionante, que em pouquíssimo tempo a comida já havia terminado. 
 


Nesta semana lemos a Parashat Shoftim, que nos ensina diversos assuntos, tais como a pena aplicada para pessoas que faziam idolatria, as leis referentes à futura escolha de um rei para o povo judeu, o cuidado com falsas testemunhas e o comportamento do povo judeu durante as guerras.
 
Em relação às guerras, a Torá nos ensina um detalhe interessante. Antes das batalhas se iniciarem, algumas pessoas eram dispensadas do serviço militar, como está escrito: “Quem é o homem que construiu uma casa nova mais ainda não a inaugurou? Que se vá e volte para sua casa, para que não morra e outro homem a inaugure. Quem é o homem que plantou um vinhedo e ainda não o redimiu? Que se vá e volte para sua casa, para que não morra e outro homem o redima. Quem é o homem que noivou com uma mulher mais ainda não casou com ela? Que se vá e volte para sua casa, para que não morra e outro homem case com ela” (Devarim 20:5-7).  A Torá especificamente registrou três categorias de pessoas que eram dispensadas da guerra. O ponto em comum é que eram pessoas que haviam deixado algo inacabado e, por isso, ficariam preocupadas demais, com medo de morrer na guerra e nunca terminar o que havia ficado pendente.
 
Muitos comentaristas entendem que esta lei da Torá era uma medida prática. Qualquer soldado que estivesse em uma destas três categorias ficaria, mesmo durante a guerra, com a cabeça completamente ocupada com os pensamentos do que havia deixado para trás, certamente prejudicando seu desempenho. Além disso, sua falta de foco podia ter um impacto negativo sobre seus colegas, diminuindo a moral deles. Por isso, pela segurança do povo, era questão de bom senso dispensar do exército pessoas que se enquadravam nestas três categorias.
 
Porém, se esta é a explicação do motivo da dispensa, então por que a Torá trouxe apenas estas três situações? Certamente existem centenas de outras situações que fazem com que a pessoa perca o seu foco. Por exemplo, uma pessoa que está com muitas dificuldades na educação de seu filho, uma criança extremamente rebelde e malcriada, ele também não consegue manter seu foco por estar perturbado com seus problemas familiares. Apesar disso, a Torá não inclui este tipo de situação entre as dispensas militares. Por que justamente estas três são mencionadas pela Torá, se existem muitas outras situações que desviam o foco da pessoa?

A pergunta fica ainda mais difícil quando olhamos a explicação dada por Rashi (França, 1040 – 1105), que afirma que estas três situações em especial causam “Agmat Nefesh” (tormento da alma). Mas se todo o problema era apenas a falta de foco, por que Rashi utilizou uma linguagem tão “poética”, de “tormento da alma”, ao invés de simplesmente ter explicado que o motivo é a falta de concentração por causa das outras preocupações que podem estar na cabeça do soldado?
 
A resposta está em um interessante ensinamento do Talmud (Sotá 2a), que afirma que 40 dias antes da formação de um feto (neste caso a expressão “formação” refere-se ao momento em que a alma entra no feto em desenvolvimento), uma Voz Celestial anuncia quem será sua futura esposa, onde será sua residência e de onde virá seu sustento. De acordo com nossos sábios, 40 dias antes da formação do feto é justamente o momento da concepção física, quando todos os dados genéticos contidos no DNA começam a atuar no desenvolvimento do bebê. Neste momento da concepção física, detalhes como a inteligência, a aparência, as habilidades e as inclinações da criança, isto é, os dados genéticos que compõe as características básicas dela, já começam a atuar. Mas por que o Talmud afirma que exatamente neste mesmo momento é anunciado ao feto quem será sua esposa, onde será sua residência e de onde virá seu sustento?
 
De acordo com o Rav Yohanan Zweig, o Talmud está nos ensinando que, apesar destas três coisas parecerem apenas detalhes externos à essência do ser humano, elas são fatores fundamentais na definição e na forma como se expressa a essência da pessoa, exatamente como a carga genética dela. A esposa é a alma gêmea da pessoa, a parte que falta para completar a sua alma. Também a casa e a profissão de uma pessoa são maneiras de definir a sua essência. Por exemplo, o médico é chamado de “doutor” mesmo quando não está trabalhando, pois sua profissão torna-se parte do seu nome. De forma semelhante, o chefe de família é chamado de “Baal HaBait” (dono da casa), pois ter uma casa o torna uma pessoa mais completa.
 
Ao dispensar estas três categorias de pessoas do serviço militar, a Torá está nos ensinando uma importante lição: a necessidade de iniciar um casamento, de começar um trabalho e de ter a sua própria casa causam uma preocupação muito forte no ser humano. Não se trata apenas do desvio de foco por causa de algo que o incomoda. Como estes três assuntos definem o próprio “eu” da pessoa, e são formas da alma se definir e se expressar, o fato de não ter completado algum destes processos, junto com o temor de que outra pessoa pode vir a colher os frutos do seu árduo trabalho, chegam a trazer tormento para a alma do soldado, impedindo-o de exercer de maneira eficiente suas funções no exército. Neste caso, é melhor ele voltar para casa e terminar o que está pendente do que ficar, completamente atormentado, na frente de batalha.
 
Atualmente estes fatores não são levados em consideração para dispensar alguém do exército. Então como podemos utilizar este conceito da Parashat para nossas vidas? Em primeiro lugar, isto nos desperta sobre o verdadeiro valor das nossas esposas e maridos, do nosso trabalho e da nossa casa. Como são coisas que estamos em contato constante, infelizmente acabamos nos acostumando e deixando de dar o seu devido valor.
 
Além disso, há outra aplicação prática: o Chessed (bondade) que podemos fazer aos outros. Se estas três coisas são tão importantes na vida do ser humano, a ponto de definirem sua essência, então devemos nos esforçar muito para ajudar aqueles que ainda não conseguiram atingi-las. E se pararmos para refletir, perceberemos que as oportunidades de fazer Chessed nestas áreas são imensas. Por exemplo, podemos ajudar alguém desempregado a conseguir um bom emprego, fazendo-o se sentir mais completo. Também podemos participar ativamente da Mitzvá de “Achnassat Kalá”, isto é, ajudar casais com dificuldades financeiras a realizarem sua festa de casamento. Também é um grande Chessed ir a uma festa de casamento e, ao invés de se preocupar em comer e se divertir, focar em alegrar o noivo e a noiva e fazer daquele momento algo muito especial para eles.
 
Pessoas que se sentiam “incompletas” não podiam lutar no exército contra seus inimigos. Da mesma maneira, muitas vezes pessoas que se sentem “incompletas” podem também não conseguir vencer suas batalhas do dia a dia. Por isso é tão importante ajudá-las, principalmente nestas três áreas, para que voltem a ter tranquilidade e possam seguir suas vidas de forma mais harmônica e equilibrada.

SHABAT SHALOM                                           
 
Rav Efraim Birbojm

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