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Equilíbrio entre o material e o espiritual

“O Sr. Jorge estava reunido com um grupo de amigos da sinagoga, no meio de uma animada conversa. De repente, ele fez um desabafo:
 
– Eu tenho ido à sinagoga por trinta anos. Durante este tempo, ouvi pelo menos duas mil prédicas do rabino. Porém, não consigo lembrar de quase nenhuma. Penso que estou perdendo meu tempo, e os rabinos estão desperdiçando o tempo deles dando semanalmente estas prédicas!
 
A conversa tomou ares de discussão, todos querendo falar ao mesmo tempo, alguns criticando, outros concordando com o argumento filosófico do Sr. Jorge. O Sr. David, que até aquele momento havia permanecido em silêncio, pediu permissão para falar:
 
– Eu estou casado há mais de trinta anos. Durante todo este tempo, minha esposa deve ter cozinhado pelo menos vinte mil refeições. Apesar disso, eu não consigo me lembrar do cardápio de quase nenhuma delas. Mas de uma coisa eu sei: todas elas me nutriram e me deram a força que eu precisava para fazer o meu trabalho. Se minha esposa não tivesse me dado estas refeições, hoje eu não estaria mais vivo.
 
– Da mesma maneira – conclui sabiamente o Sr. David – se eu não tivesse ido à sinagoga para alimentar minha fome espiritual, hoje eu não estaria vivo espiritualmente.”
 
Precisamos nos alimentar para manter o nosso corpo, mas também precisamos nos alimentar de espiritualidade para manter a nossa alma. Somente o material e o espiritual juntos, em equilíbrio, podem nos manter vivos de verdade. 

A Parashá desta semana, Balak, começa descrevendo o desespero do rei do povo de Moav, chamado Balak, com a aproximação esmagadora do povo judeu, que havia vencido todos os inimigos que haviam aparecido no seu caminho. Sabendo que não tinha chances de lutar contra um povo que tinha uma proteção Divina especial, Balak contratou o profeta Bilaam, que tinha o poder de amaldiçoar até mesmo povos inteiros. Porém, apesar dos esforços de Bilaam, D'us protegeu o povo judeu e as maldições se transformaram em Brachót (bênçãos).
 
No final da Parashá, a Torá nos descreve que Bilaam finalmente teve uma ideia de como derrotar o povo judeu: fazendo-os cometer transgressões, para que perdessem a proteção Divina e fossem castigados. Com a ajuda do povo de Midian, que nutria um ódio gratuito pelo povo judeu, a ideia de Bilaam funcionou. Seduzidos por jovens mulheres de Midian, os judeus transgrediram e terminaram fazendo idolatria, e foram castigado com uma terrível praga. Esta tragédia foi um evento muito tristes na história do povo judeu.
 
A tristeza que esta tragédia causou nos recorda do período de três semanas que vamos entrar na próxima semana, chamado de “Bein Hametsarim” (literalmente “entre os apertos”), que vai do dia 17 de Tamuz até o dia 9 de Av. O nome “Bein HaMetsarim” é baseado em um versículo do profeta Yirmiahu: “Todos seus perseguidores alcançaram-na dentro dos apertos” (Eichá 1:3). E este Domingo (24/07) é o dia 17 de Tamuz, um dia de luto e muita tristeza para o povo judeu, no qual jejuamos. A causa de tanta tristeza é que justamente neste dia aconteceram cinco eventos trágicos na nossa história. Neste dia Moshé quebrou as Tábuas que continham os Dez Mandamentos; durante o cerco ao Primeiro Templo, neste dia terminou o estoque de animais utilizados para os Korbanót (sacrifícios); na época do Segundo Templo, foi neste dia que as muralhas de Jerusalém foram rompidas pelos nossos inimigos; neste dia Apostamus, um oficial romano, rasgou e queimou um Sefer Torá; e também neste mesmo dia uma idolatria foi colocada dentro do Templo Sagrado.
 
Destes incidentes, talvez o que mais nos chama a atenção é a quebra das Tábuas. Moshé havia subido no Monte Sinai para receber a Torá, e avisou ao povo que voltaria quarenta dias depois. Porém, o povo judeu errou nos seus cálculos e ficou desesperado quando o prazo expirou e Moshé não voltou. Quando finalmente Moshé desceu do Monte Sinai, trazendo em suas mãos as Tábuas contendo os Dez Mandamentos, ele se deparou com o povo judeu cantando e dançando alegremente pela construção do bezerro de ouro, o seu novo “líder”. Ao ver aquela cena terrível, Moshé quebrou as Tábuas que trazia nas mãos. O que esta quebra significou ao povo judeu?
 
Há um versículo que descreve um detalhe interessante sobre as Tábuas: “E as Tábuas eram feitas por D'us, e a escrita era a escrita de D'us, gravada nas Tábuas” (Shemot 32:16). A Torá está nos ensinando que as letras das Tábuas eram esculpidas, e não simplesmente escritas com tinta. A Mishná (Pirkei Avót 6:2) se aprofunda ainda mais e nos ensina que a linguagem “Charut”, que significa “gravada”, vem da mesma raiz de “Cherut”, que significa liberdade. Desta semelhança entre as duas linguagens a Mishná aprende que somente é livre de verdade aquele que se dedica ao estudo da Torá.
 
Porém, este ensinamento do Pirkei Avót é difícil de ser entendido. A Torá é composta por centenas de Mitzvót, que acabam limitando muito nossa vida. Tomando como exemplo a Kashrut (leis alimentares), há muitos tipos de comidas saborosas que a Torá nos proíbe de consumir, como a carne de porco e os frutos do mar. A Torá nos traz regras para todas as áreas da vida, desde o momento em que acordamos até o momento em que vamos dormir. Então como a Mishná pode afirmar que apenas aquele que estuda Torá pode ser livre de verdade? De que liberdade a Mishná está falando? Além disso, qual é a conexão entre o entendimento mais simples das palavras do versículo, de que as palavras dos Mandamentos eram gravadas nas Tábuas, com a interpretação mais profunda dos nossos sábios, de que apenas a Torá nos dá a liberdade verdadeira?
 
Explica o Rav Yohanan Zweig que a dificuldade para entender a Mishná do Pirkei Avót vem do nosso conceito equivocado sobre liberdade. De acordo com o nosso entendimento, a liberdade é normalmente definida como o direito ou privilégio de agir ou se expressar sem nenhum tipo de coerção, da maneira que desejamos. Já a definição de liberdade da Torá leva em consideração o fato de que normalmente nos comportamos de uma maneira que se esconde sob o disfarce de “liberdade de expressão”, mas na realidade estamos submetidos às mais diversas forças. Pensamos que somos livres, mas sem nenhum tipo de limite, na realidade somos completamente controlados pelas pressões sociais ou pelos nossos desejos físicos e emocionais. Estamos conscientes da natureza destrutiva dos nossos atos, mas nos sentimos impotentes para superar a ilusão da aceitação social e da autogratificação.
 
Utilizando novamente como exemplo o assunto alimentar, as pessoas acham que são livres, pois podem comer o que têm vontade, no momento em que quiserem. Mas será que somos livres de verdade? Alguma vez deixamos de comer algo gostoso por saber que faz mal à saúde? Conseguimos manter nosso autocontrole diante de uma mesa de sobremesas, mesmo sabendo do mal que o açúcar causa em nosso corpo? Quantas pessoas continuam fumando, apesar de todos os estudos que comprovam os terríveis males à saúde deste vício? Quantas vezes vestimos uma roupa apenas porque está na moda, mesmo que não é o que gostamos? Isto é liberdade?
 
A solução para nos libertarmos destes tipos de influências é a Torá, que nos capacita e nos dá a habilidade de superarmos estas forças coercitivas. A Torá auxilia na remoção do conflito que existe no processo de tomada de decisões, nos possibilitando nos comportar da maneira apropriada em relação aos nossos desejos. Podemos e devemos usar os nossos sentidos físicos, mas de maneira ponderada. Os desejos devem nos trazer energia, não consumi-la. É por isso que estar limitado por restrições não implica em uma perda da liberdade. As restrições da Torá são, em última instância, para o nosso próprio benefício. Elas nos impedem de fazer atos que nós realmente gostaríamos de evitar. A Torá nos dá autocontrole, e as Mitzvót são um treinamento diário para que nosso lado racional tome as decisões, não o nosso lado emocional ou os nossos desejos. A Torá nos ajuda a fazer o que é realmente bom para nós, mesmo que não seja socialmente o mais popular nem traga mais prazeres imediatos.
 
Este conceito também está implícito nas palavras do versículo mencionado anteriormente. As palavras dos Dez Mandamentos representam a espiritualidade, enquanto as Tábuas representam o mundo material. Se os Dez Mandamentos tivessem sido apenas escritos, como tinta sobre o pergaminho, então isto implicaria em uma imposição e coerção das palavras sobre as Tábuas. Mas o Talmud (Meguilá 2b) nos ensina que D'us fez com que as letras dos Dez Mandamentos estivessem milagrosamente suspensas nas Tábuas. Explica o Rav Yohanan Zweig que parte do milagre foi que as Tábuas se enrolaram em volta das palavras, dando forma para as letras. O que isto nos ensina? Que o material e o espiritual não são concorrentes, e sim complementares, podendo coexistir sem nenhum tipo de conflito. É possível, através do estudo da Torá, utilizar o material e o espiritual de maneira equilibrada.
 
Todos nós temos uma tendência natural de nos comportarmos da maneira correta. Temos um “alarme interno”, chamado consciência, que nos avisa quando estamos fazendo algo errado. Mas este “alarme” pode ser abafado dentro de nós, e até mesmo desligado, por impedimentos sociais ou desejos internos que mascaram nossos verdadeiros sentimentos. A Torá nos ajuda a retirar estes impedimentos, vencendo os conceitos errados e os sistemas de valor equivocados criados pela sociedade.
 
Agora podemos entender, de maneira mais profunda, que a quebra das Tábuas representou a perda da liberdade verdadeira. Esta é uma das maiores tragédias do ser humano, ser escravo achando que é livre, ser dominado por seus desejos ou pelas imposições sociais e pensar que está livre para decidir. A Torá nos dá a liberdade verdadeira, pois é através dos limites e das restrições que poderemos ser quem nós queremos ser de verdade.

SHABAT SHALOM

R' Efraim Birbojm

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